sábado, 6 de outubro de 2007

Um livro de amor




Há quem ignore o amor à leitura, há quem só saiba do amor pela literatura. Compreendi isto ao ler este trecho do conto Felicidade Clandestina de Clarice Lispector, que a Júlia Moura Lopes teve a gentileza de me enviar, amiga também de quem escreveu os Laços de Família. A narrativa é singela. Uma menina «gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruiva­dos«. Uma menina que «tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas». Uma menina que, porém, «possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria». A narrativa é breve, a história de uma menina, cruel, perversa, diabólica, uma menina possuidora de livros que não lia.

A narrativa é desconcertante. Um dia a menina má, gorda, crespa, emprestou, enfim, à ansiosa narradora do conto um livro, pelo tempo que quisesse. De «peito quente e coração pensativo», a menina achatada e sozinha, tinha, enfim, ao alcance de si e a quem se oferecer, «meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o». A narrativa acaba aqui: «Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante».