domingo, 25 de novembro de 2007

O ar constrangido


Sobre ela escreveu Affonso Romano de Santtana, no livro A Sedução das Palavras, capítulo Sete anos sem Clarice, e que uma alma amiga me enviou:
«Gostava de mistérios, fazia cursos de esoterismo e tornou-se cliente da minha cartomante de confiança, no Méier. Mas foi na Colombia que participou de um congresso de bruxarias, representando o Brasil. Seu sortilégio foi ler o sofisticadíssimo conto O Ovo. E ante o pasmo da audiência, solenemente, concluiu:- Não entenderam? Nem eu».
Obrigado Júlia pela lembrança. Há no ovo o princípio de todos os primórdios, a lógica de todas as probabilidades. Leio, hoje, domingo de manhã, sem tempo quase para viver: «O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida. O ovo é o sonho inatingível da galinha. A galinha ama o ovo. Ela não sabe que existe o ovo. Se soubesse que tem em si mesma o ovo, perderia o estado de galinha. Ser galinha é a sobrevivência da galinha. Sobreviver é a salvação. Pois parece que viver não existe. Viver leva a morte. Então o que a galinha faz é estar permanentemente sobrevivendo. Sobreviver chama-se manter luta contra a vida que é mortal. Ser galinha é isso. A galinha tem o ar constrangido».

sábado, 24 de novembro de 2007

Um pouco tarde!

A Elizabet, generosa, procurou um link onde li uma pequena biografia da Clarice Lispector e nela que em 1960, separada de seu marido, diminuída por razões financeiras «começa a assinar a coluna Só para Mulheres, como ghost writer da atriz Ilka Soares no Diário da Noite». O marido de Ilka, o também actor Anselmo Duarte, que se vê aliás na foto, diria a propósito de si próprio: «quem criticava meus filmes, depois da Vera Cruz, eram alguns moleques do Rio de Janeiro, que invejavam os prêmios conquistados por mim internacionalmente, e como não sabiam nada de cinema voltaram para as suas antigas profissões, me deixaram em paz e, os que não morreram, estão me pedindo perdão. Um pouco tarde!»
Diz-se que por detrás de um grande homem está sempre uma grande mulher. Ignora-se que há casos em que por detrás dessa grande mulher está, escondida e anónima, uma extraordinária mulher. Isto pensado este sábado por um moleque de Lisboa que, sendo o fantasma da sua própria escrita, vai ter de voltar segunda-feira à sua antiga profissão.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Desabafo

1947 Berna - Suiça: «Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual o defeito que sustenta nosso edifício inteiro...há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma em boi. Assim fiquei eu...Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também a minha força. Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que imagina que é ruim em você - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse seu único meio de viver. Juro por Deus que, se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia ia ser punida e iria para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não é ser punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo o que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber. Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade da alma». Clarice

domingo, 4 de novembro de 2007

Para não esquecer

Dias completamente parados, a ler sem critério o que não chego a entender, a folhear sem utilidade livros lidos e de que me esqueço, volto a um livro seu tão denso que se tornou interminável, cada palavra como se rebentasse o coração. «É com algum deslumbramento, e prévio cansaço, que sucumbo ao que vou experimentar viver», diz ela. Talvez amanhã já seja segunda-feira.