domingo, 30 de junho de 2019

Um outro e novo ivro

Nunca se tem todos os livros de todos os escritores, nem todos os livros de escritor de quem se julga, por tanto gostar, ter tudo quanto publicou. Humilde ante essa regra de modéstia, é com gratidão tímida que aqui estou, ante o meu amigo Ernane Catroli, ambos irmanados em torno da obra da autora de A Maçã no Escuro, pois que, envelope transatlântico, surrado de uma longa viagem, o rosto cravejado e selos postais, como roseiral em flor, me fez chegar, entre escritos seus, o livrinho Para não Esquecer.
Graficamente modesto, papel pobre, obra póstuma, tirado pela brasileira Edições Ática, em 1979, dois anos após a morte da sua autora, são 108 apontamentos, entre o aforismo e a breve crónica. 
Ao tomá-lo em mãos reencontrei-me, num primeiro pensamento afinal superficial, com a Clarice que ainda hoje, agora episodicamente, ficou pelas redes sociais, a das curtas frases tristonhas, construídas sobre o incongruência lógica que torna em surpresa e aquela forma gramatical que parece ser escrita de quem, estrangeiro, e ela de facto ucraniana de pais emigrados para o Brasil, aprendeu o português como segunda língua, pensando, porém, no acto de escrever, segundo a estrutura da língua materna.
Há, porém, muito mais. E que direi eu da substância da obra, impossível que é, ante tudo quanto ela escreveu, resumir, sintetizar, citar mesmo sem trair o jorro vulcânico, a densidade, o simbólico esotérico dessa Literatura que é Arte e Filosofia? 
Direi que há momentos ali em que fala de alguma dessa sua escrita, como quando, a propósito dos contos Feliz Aniversário, Os Laços de Família, Uma Galinha ou Mistério em São  Cristóvão agora sob o título Explicação Inútil, traz em jeito de confidência: «Não é fácil lembrar-me de como e por que escrevi um conto ou um romance. Depois se despegam de mim, também eu os estranho. Não se trata de "transe", mas a concentração ao escrever parece tirar a consciência do que não tenha sido o escrever propriamente dito.»
Direi, então, que só lendo e, inexistindo edição disponível, a leitura fica pelo frustrado desejo. E é pena, muita pena. Mesmo quando sob o título A posterioridade nos julgará fala apenas da gripe mas com que excelência! «Gripe é uma das tristezas orgânicas mais irrecuperáveis, enquanto dura. Ter gripe é ficar sabendo de muitas coisas que, se não fossem sabidas, nunca precisariam ter sido sabidas. É a expressão da catástrofe inútil, de uma catástrofe sem tragédia. É um lamento covarde que só um outro gripado compreende».
Parecendo na aparência colectânea, trata-se, enfim, de um repositório de novidades. Terem sido estes magníficos momentos publicados originalmente na segunda parte da primeira edição de A Legião Estrangeira, sob o título de Fundo de Gaveta é de somenos. Novo é o que, mesmo redito, é dito como se fora pela primeira vez. É esta uma das essências da escrita lispectoriana: mesmo os seus assíduos e atentos leitores, ao relerem o que deram por lido encontram sempre um outro e por isso novo livro.